Outono

É o fim de uma história que nunca foi escrita. Talvez tenha existido por alguns instantes na cabeça dele. Ou na dela. Ou até, quem sabe, nenhum dos dois tenha pensado nisso. Talvez eles apenas tenham pensado um no outro de forma perigosa, por poucos minutos. Ele gostava de observar. E de pensar. Ela não gostava de pensar que ele observava e pensava. Mas, por vezes, ela imaginava como seria, se um dia realmente fosse. Outras vezes, preferia esquecer.

Não era uma história. Mas ela fez ele rir por alguns minutos de um sábado. (Foi ele mesmo que contou). E ele fez com que ela risse em horas inadequadas. (Foi ela mesma que revelou). Haveria então alguma hora marcada para rir? Na verdade, nunca houve hora marcada para nada. Exceto uma vez. Mas não foi exatamente marcada. Foi quase uma sugestão, sussurrada. Naquele momento, pelo menos, riram juntos. Um do outro, dos dois e até dos outros. Parecia cena de filme. Se fosse, o público poderia até achar que se tratasse da tal cena em que começa uma história entre dois. Mas não era um filme. E muito menos o início do que poderia até ter se transformado em uma história.

Ela não o conhecia muito. Mas ele estava sempre ali, para observar e ser observado. Na embalagem poderia vir o slogan: interessante, inteligente, inacessível. Mas, em letras pequenininhas na lateral do rótulo, viria também: perdido, misterioso, só, prepotente,  prático, acomodado, triste. E, se ele se escondia, ela ficava exposta até demais: exagerada, atrapalhada, intrometida, festeira, amiga. Obviamente, ela também guardava suas letras minúsculas: sensível, teimosa, intensa, impulsiva, intransigente, indecisa, obstinada.

Na verdade, todas essas características formavam personagens típicos, estereotipados pelo senso comum. Só que este era o detalhe: de comum, os dois não tinham nada. E por um acaso do destino, descobriram que havia mais ali. Havia bom humor, boas idéias, inspiração e o principal: cumplicidade onde ninguém havia procurado. Eram responsáveis pelo que cativavam. Eram sensatos. Mas sempre era mais interessante quando optavam pela insensatez.

Com ela, ele aprendeu sobre signos, mapas, ascendentes e astrólogos. Descobriu que o beijo de sagitário pode ter cheiro de feno e pecado. Com ele, ela descobriu leveza na seriedade, e percebeu que “etc” pode ser uma palavra muito interessante. Gostavam do etc, da amplitude e das generalizações levianas. A conversa era sempre inteligente, animada, e, principalmente, franca. Falavam sobre tudo. Filosofavam sobre as teorias mais esgotadas, sobre o tempo, jogos, relações, inspirações, transpirações, desejos.

Ela buscava intensidade. Dava seus primeiros passos em um roteiro repleto de clichês. Sobrevivia, mas queria mesmo viver, construir e caminhar sempre mais. Ele planejava as próximas décadas de sua vida. Ela, no máximo os próximos dois dias da semana. (O destino nunca facilitava mesmo). Ela valorizava os detalhes. Ele gostava de desafios. (Mas não era muito de cumprir contratos verbais ou escritos).

Ambos tinham talento, isso era fato. E por vezes se perdiam em suposições, um no talento do outro, naquele jogo, naquela rede tecida pelo que poderia ser proibido, temeroso e desejado. Segundo palavras dele, “só o que está perdido pode ser encontrado”. Não temiam os riscos, nem os desafios. Eram atraídos por eles. E trocavam de papéis repetidamente, desafiante e desafiado, assumiam personagens só permitidos pela eterna cumplicidade. Uma cumplicidade efêmera, teimosa, que fazia com que, por vezes, pensassem que quase se conheciam.

Mas, mesmo assim, a história não foi escrita. Teriam escutado apenas o que queriam? Enxergaram o que seus olhos preferiram? Não há história. Os possíveis personagens se perderam, se desencontraram. Perderam o tempo e a cumplicidade. Andavam em ruas paralelas, acenavam um para o outro nas esquinas, mas seguiam seus caminhos. Até que  chegaram ao ponto em que teriam que escolher apenas uma rota. Ele seguiu pelo túnel: escuro, objetivo, fácil, rápido e com a certeza da travessia de todos os dias. Ela escolheu a orla: a vista mais bela, o caminho cheio de curvas fechadas, ensolarado, mas sempre à beira do precipício. Cada um no seu caminho, no seu tempo, com seus objetivos. E sempre sós naquele trajeto sem fim.

Que necessidade sem passado. Que busca inconsciente do que nunca aconteceu. No caminho ela pensava: malditos sejam sagitário, libra, capricórnio e todos os signos. E claro: os astrólogos, os horários e os mapas astrológicos. Que se fodam Baudelaire e sua maldita solidão escrota, Freud e todas as suas teorias de homem mal resolvido, que produziu milhares de outros mais mal resolvidos ainda e o pior: com argumentos fundamentados em sua besta teoria.

A culpa era do vidro. Daquela maldita parede de vidro, imperceptível aos olhos e insuportavelmente sensível ao toque. Ele afirmava aos quatro cantos que gostava de mergulhar fundo. E realmente mergulhava, mas dentro do seu imenso, colorido e previsível aquário. Ela tinha a imensidão do oceano a sua frente. Ele, a segurança daquelas quatro paredes transparentes, construídas de forma árdua durante tantos anos. Conhecia a tempestuosidade do mar aberto, mas talvez preferisse hoje a calmaria.

A história não foi escrita e nunca houve certo e errado. Apenas escolhas. E mesmo quando nada faziam, estavam também optando. Não houve autor para escolher escrevê-la ou talvez, em algum tempo, os personagens escolheram não encenar história alguma. Não houve título, vozes, linhas, cheiros, letras, toques, tinta, gosto, vírgulas, olhares nem dedicatórias. As páginas apenas ficaram em branco.