Eu não quero motivos

Lidar com tragédias pode virar rotina. Mas, depois que o trabalho acaba, depois de relatar a situação e atualizar todos os dados, ainda resta sensibilidade para enxergar uma das demonstrações de amor mais reais e mais tristes que já vi.

Em um infeliz acaso do destino, eles atravessavam juntos a rua República do Peru no momento exato da explosão. Ela foi projetada a metros de altura e já chegou ao chão com o corpo em chamas. Ele, para tentar salvá-la, atirou o corpo contra o dela para tentar apagar o fogo.

A cena foi contada por diversas vozes. E todas elas relatavam o horror do momento e o desespero dele que, ao mesmo tempo, tentava acalmá-la.

Sara teve oitenta por cento do corpo queimados. David, trinta e cinco por cento. No hospital, o estado dela é grave. O dele inspira cuidados. Americanos, de Ohio. Ela com 28 anos, ele com 31.

Algumas vozes dizem que, na situação dela, talvez fosse melhor não sobreviver. Como? A vontade é de perguntar: ouviram tudo que contei? Prestaram atenção? Quem teria coragem de dar essa notícia e consolá-lo com tal argumento?

Alguém seria capaz de tentar adivinhar o que dói mais nele: as queimaduras no corpo ou a preocupação com ela? Não consigo imaginar como deve ser a vida após uma tragédia como essa. Mas, sobra uma única certeza: a de que as teorias são, para mim, cada vez mais fúteis.

Não há teorias quando se trata da pessoa que você ama. Não há lógica. Danem-se as análises sobre como será o futuro. Dá-se um jeito! David não fez uma “análise de riscos” antes de abraçar o corpo da esposa em chamas. Ele queria ela ali, viva.

A história contada por bocas tão diferentes, por pessoas que não entendiam palavra alguma pronunciada pelos dois e que compreendiam perfeitamente cada grito dela e cada toque dele.

Ela sobrevive. Porque cada expressão de quem conta a história traz junto o horror, a tristeza, mas também compaixão e admiração. E a respiração de quem absorveu tudo aquilo.

O que você faria pela pessoa que você tanto diz que ama?

Com licença?

Uma personagem que invadia as histórias. A dos outros. Percorria as prateleiras da imensa biblioteca a céu aberto. No caminho, fazia bons amigos. Curiosa, abria os livros e pedia licença para entrar. Às vezes, entrava sem pedir licença. Em outras ocasiões, puxavam-na para dentro, sem avisos... Tão pequenina naquele universo de cheiros e palavras. Sentada, na beira da estante mais alta, admirava tudo aquilo. Tantos amigos, tantos mundos diferentes. Como as pessoas tinham histórias pra contar, e como contam das mais diversas formas histórias tão parecidas. E tão particulares ao mesmo tempo! Pedia desculpas por atrapalhar. Atrapalhava e se atrapalhava. É que ela tinha que continuar o caminho. Aprendeu muito cedo que não podia parar. Mas tinha aquele apeeeerto lá dentro. Queria ser a exceção. Aquela para qual há um lugar que lhe aguarda. Ser encontrada. Sonhava encontrar, sem procurar. Desejava tanto ser e fazer feliz, que doía. Mas sorria. Sempre. Como se aquele sorriso pudesse ajudar a iluminar o mundo, mesmo que o alcance fosse pequeno. Mesmo que o brilho nos olhos viesse embaçado por algumas teimosas lágrimas. Por vezes, a alma só deseja abrigo. Há momentos em que ela não cabe no corpo. Em outros, fica tão pequenininha que o eco do espaço que sobra torna-se assustador. Do alto da prateleira, o céu era tão claro que dava para brincar de ligar pontos com as estrelas. Todas as noites, em silêncio, pedia a elas que a abençoassem.

A morte de um radinho

Foi para casa com todas as reflexões da madrugada, questionamentos, planos, suspeitas, sentimentos, análises, sensações. Eram tantas coisas na cabeça que já nem lembrava mais qual delas havia puxado todas as outras. O caminho era longo, mas não o suficiente para esgotar as lembranças. Quase não passaram todas ao mesmo tempo pelo portão.

Roupas no chão, banho tomado, porém, a inquietude não havia escorrido junto com a água. Olhou para a cama, imaginando a segunda madrugada-manhã insone. Só que, mais atentamente, avistou uma pequena folha de caderno, escrita.

“Querida,

Tudo bem? Espero que sim.


Estou sem te ouvir faz quatro dias, meu radinho morreu! Caiu do terraço, não se salvou. Mas vou colocar outro no lugar.

Que Deus te proteja e ilumine seus caminhos. Que te guarde e te ampare.

Fique com Deus e tenha uma noite de paz. Sexta-feira eu ligo para você.

Um beijo no seu coração. Se alimente bem.”

(No final, um desenho de uma carinha sorrindo.)

Coração aquecido. Olhos cheios d’água. Lábios comprimidos junto com um meio sorriso. O restinho de ar que havia, expirado. Talvez nesta ordem, talvez tudo ao mesmo tempo.

Chorou pela morte do radinho. O gesto mais simples de amor deixa todo o resto tão pequeno...

O que fica, resta.

"Vou embora." - ele disse.

"É melhor você decidir a sua vida mesmo." - ela respondeu.

E ele foi, levando o rádio e a televisão. Ela engoliu o choro e fez cara de quem está com a razão. Melhor assim. Afinal, não precisava dele!

O rádio e a tv? Ela não fazia questão. Quer dizer, só do rádio. Do rádio ela sentia falta. Mas isso seria resolvido rápido, era só dividir um novo em parcelas infinitas no cartão de crédito e pronto!

Durante o dia era mais fácil, passava horas entretida com o trabalho. Aí, vinha a noite. E São Pedro nem para colaborar... Toda dor de cotovelo torna-se fatal em noites de chuva. Era como se a natureza fizesse companhia às lágrimas.

Pelo menos agora ela não precisava mais carregar o colchão de casal, maior que a cama, para a sala, conforme faziam todas as noites. Melhor assim. Aquele colchão imeeeeeenso só para ela! Só para ela. Só.

Não conseguia dormir. Porcaria de colchão. Por ser só um corpo, afundava no meio e fazia doer a coluna. A culpa era do cretino, que comprou o colchão sem medir a cama antes.

Quando é mesmo que o outro, que há pouco era o grande amor, se transforma no inimigo da trincheira? Ninguém lembra.

Os amigos vinham lhe contar que ele andava rondando o portão de casa, "Ainda bem que troquei a fechadura." - avisava firme. Mas lá no fundo o coração batia forte, pensando na proximidade. Em uma dessas noites de chuva, saiu até o portão e... ops! Por um descuido, esqueceu aberto. Mas ele não apareceu.

Deitada, olhava o teto de telhas de amianto. "Ainda tenho o barulho dos pingos para me fazer companhia". E o sono custava a chegar. Pensava nele. O que estaria fazendo? Certamente o cachorro estaria dormindo enquanto ela ganhava olheiras de panda. Ou pior: acordado em uma cama alheia. E ainda levou o rádio e a televisão!

Na claridade da madrugada, observava a casa de três cômodos. Era bem maior do que ela imaginava. Como aquele cretino deveria ser espaçoso, afinal, que vazio todo era aquele? Ah! Mas estava faltando os eletrodomésticos que ele levou sem dó. Não... Não faltava. O rádio ela já tinha comprado. Nossa, quanta falta fazia a televisão...

Rolou para o outro lado da cama, abraçou o travesseiro e respirou fundo. Cheiro de sabão em pó. Faltava alguma coisa ali. Faltava o cheiro dele. Mania de bicho ficar gravando o cheiro dos outros...

Olhando o céu pela fresta da janela, inspirou e expirou bem forte, como se quisesse expirar junto a mágoa e toda aquela solidão. Mas havia ausência dentro e fora do corpo. E aquela chuva, que não passava.

Carta a um Samurai

Ela tentou começar diversas vezes. Relia as palavras escritas por ele, que poderiam ser endereçadas a tantas outras personagens, e tentava ignorar as que possuíam Cep. Mas havia um quê de chuvas de verão ali. E chuvas de verão são inconfundíveis.

Não, ela nunca foi um anjo com auréola. Anjos não ardem durante as madrugadas. Era apenas um personagem batizado por um carinhoso sotaque português na mesa de um restaurante em Ipanema. E essa era mais uma daquelas histórias que só dois entendem, cuja lembrança provoca sorrisos, ao mesmo tempo que rasga alguma coisa lá dentro. Existe um código de comunicação entre amantes capaz de fazer inveja a qualquer abelha rainha.

As palavras impressas já estavam quase decoradas. O papel, cansado de ser desdobrado, resistiu bravamente às tempestades do Rio. Odiava quando não conseguia colocar os pensamentos em ordem, e eles vinham avassaladores. E aquela pergunta afiada para qual ela não tinha resposta. E ele sabia disso. Foi ela quem começou com as perguntas, mas argumentava pra si mesma que ele não precisava ter respondido. Só que ele era fã das teorias, das reflexões. E nem cabia reclamação porque tudo começou exatamente desta forma. "Não foi o seu cabelo loiro que me conquistou". Não, não foi.

A mente estava tão confusa que não dava chance de criar, pelo menos, uma sequência lógica de argumentos. Ele pedia que ela fizesse uma autoavaliação, mas ela não sabia se enxergar pelo lado de fora. Pensou então em começar exatamente por aí: "O que eu aparento, Samurai?".

Samurai. Perdeu-se de novo. Começou a refletir sobre a arte de ser um Samurai em 2010. A classe era rara e ela descobriu sua identidade quando ele a deixou por poucos minutos. Sozinha, na sala escura, avistou as espadas. Soube na hora que não faziam parte da decoração. A partir daquele momento, compartilhavam mais um segredo. Mas os Samurais de 2010 fazem guerras com o laptop no colo, sentados em uma confortável poltrona, com uma taça de vinho ao lado.

Ela que não sabia ser metade. Refletia sobre como alimentou o vício das esbórnias cúmplices enquanto ele pronunciava o velho discurso decorado de "não querer magoar". Irônica contradição. Um Samurai com medo de ferir alguém. Mil vezes o corte da lâmina que a pronúncia daquelas palavras desgastadas. Havia o "sorriso no olhar" batizado por ele. Aquilo era mais do que confiança. E parecia real. Mas ela não saberia descrever em uma palavra. Porque a definição de abstrato pelo que não se pode tocar deixava nebulosa a concepção de realidade. O toque dele era real. O tato dela também. Mas os momentos pareciam esquetes. A história não evoluía. E talvez nunca evolua exatamente por ser de sua natureza não viver para o amanhecer. Não é sempre que as manhãs trazem um novo dia.

Voltou os olhos para o texto. Segredos. Os deles, ali. Tão expostos e tão escondidos ao mesmo tempo. Cada palavra importava demais. E ela sussurrava uma frase para si mesma como um mantra: "O que você quer, Samurai?". Porque os jogos de palavras, as metáforas, as entrelinhas, tudo isso seduz. Trazem a mágica, a fantasia. Mas existem momentos em que as coisas precisam ser ditas de forma simples, para que não haja dúvidas. Como no dia em que ele concluiu: "Volta pra casa". Nada mais direto, não é mesmo? Tanto, que ela nem argumentou. Só respondeu em um daqueles momentos em que o mundo para e fica em silêncio para te ouvir: "Tudo bem, Samurai" - sem piscar, sem respirar.

Aquele papel amassado fazia ela se enganar mais uma vez. E trazia milhões de perguntas nas quais ela se incluía. Por que as pessoas não são mais claras? Como descobrir o nome que se dá ao que nos move? Impulso? Paixão? Amor? Talvez, no fundo, só desejasse conciliar o furacão que guardava dentro de si com alguns daqueles desejos simples de mulher. Seria pecado querer tudo? Paixão; tempestades; amor; segredos sussurrados ao ouvido junto com os fogos de Ano Novo; risadas ao telefone; dançar até às cinco da manhã; quebrar todas as regras; sexo na sala, na varanda, na parede, embaixo do chuveiro, no carro e até na cama; desejar e se sentir desejada; ser surpreendida no trabalho ou uma ligação só para dizer que está com saudades; surpreender o outro; poder gritar que está com saudades; se inspirar e ser motivo de inspiração; fazer planos; ter uma história, e não ser apenas parte dela. Desejava encontrar alguém que quisesse estar ao seu lado.

No final, desistiu de listar todas as perguntas e argumentos. Respirou fundo, fechou os olhos e tentou encontrar a melhor resposta. Na carta, escreveu apenas uma frase: "Você sabe."

* Texto em homenagem à B.