A morte de um radinho

Foi para casa com todas as reflexões da madrugada, questionamentos, planos, suspeitas, sentimentos, análises, sensações. Eram tantas coisas na cabeça que já nem lembrava mais qual delas havia puxado todas as outras. O caminho era longo, mas não o suficiente para esgotar as lembranças. Quase não passaram todas ao mesmo tempo pelo portão.

Roupas no chão, banho tomado, porém, a inquietude não havia escorrido junto com a água. Olhou para a cama, imaginando a segunda madrugada-manhã insone. Só que, mais atentamente, avistou uma pequena folha de caderno, escrita.

“Querida,

Tudo bem? Espero que sim.


Estou sem te ouvir faz quatro dias, meu radinho morreu! Caiu do terraço, não se salvou. Mas vou colocar outro no lugar.

Que Deus te proteja e ilumine seus caminhos. Que te guarde e te ampare.

Fique com Deus e tenha uma noite de paz. Sexta-feira eu ligo para você.

Um beijo no seu coração. Se alimente bem.”

(No final, um desenho de uma carinha sorrindo.)

Coração aquecido. Olhos cheios d’água. Lábios comprimidos junto com um meio sorriso. O restinho de ar que havia, expirado. Talvez nesta ordem, talvez tudo ao mesmo tempo.

Chorou pela morte do radinho. O gesto mais simples de amor deixa todo o resto tão pequeno...

O que fica, resta.

"Vou embora." - ele disse.

"É melhor você decidir a sua vida mesmo." - ela respondeu.

E ele foi, levando o rádio e a televisão. Ela engoliu o choro e fez cara de quem está com a razão. Melhor assim. Afinal, não precisava dele!

O rádio e a tv? Ela não fazia questão. Quer dizer, só do rádio. Do rádio ela sentia falta. Mas isso seria resolvido rápido, era só dividir um novo em parcelas infinitas no cartão de crédito e pronto!

Durante o dia era mais fácil, passava horas entretida com o trabalho. Aí, vinha a noite. E São Pedro nem para colaborar... Toda dor de cotovelo torna-se fatal em noites de chuva. Era como se a natureza fizesse companhia às lágrimas.

Pelo menos agora ela não precisava mais carregar o colchão de casal, maior que a cama, para a sala, conforme faziam todas as noites. Melhor assim. Aquele colchão imeeeeeenso só para ela! Só para ela. Só.

Não conseguia dormir. Porcaria de colchão. Por ser só um corpo, afundava no meio e fazia doer a coluna. A culpa era do cretino, que comprou o colchão sem medir a cama antes.

Quando é mesmo que o outro, que há pouco era o grande amor, se transforma no inimigo da trincheira? Ninguém lembra.

Os amigos vinham lhe contar que ele andava rondando o portão de casa, "Ainda bem que troquei a fechadura." - avisava firme. Mas lá no fundo o coração batia forte, pensando na proximidade. Em uma dessas noites de chuva, saiu até o portão e... ops! Por um descuido, esqueceu aberto. Mas ele não apareceu.

Deitada, olhava o teto de telhas de amianto. "Ainda tenho o barulho dos pingos para me fazer companhia". E o sono custava a chegar. Pensava nele. O que estaria fazendo? Certamente o cachorro estaria dormindo enquanto ela ganhava olheiras de panda. Ou pior: acordado em uma cama alheia. E ainda levou o rádio e a televisão!

Na claridade da madrugada, observava a casa de três cômodos. Era bem maior do que ela imaginava. Como aquele cretino deveria ser espaçoso, afinal, que vazio todo era aquele? Ah! Mas estava faltando os eletrodomésticos que ele levou sem dó. Não... Não faltava. O rádio ela já tinha comprado. Nossa, quanta falta fazia a televisão...

Rolou para o outro lado da cama, abraçou o travesseiro e respirou fundo. Cheiro de sabão em pó. Faltava alguma coisa ali. Faltava o cheiro dele. Mania de bicho ficar gravando o cheiro dos outros...

Olhando o céu pela fresta da janela, inspirou e expirou bem forte, como se quisesse expirar junto a mágoa e toda aquela solidão. Mas havia ausência dentro e fora do corpo. E aquela chuva, que não passava.